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Por meio de reparações estéticas, Nudem ajuda mulheres vítimas de violência a recuperarem a autoestima

Mulher

Quando a faca rasgou o rosto de Maria*, ela não percebeu que aquele era o homem com quem foi casada por 15 anos. Tudo aconteceu muito rápido, só apenas depois do 6º, 7º, último golpe que viu o ex-marido.

Havia quatro meses que estavam separados. Ele que tinha pedido o divórcio e ela não queria, disse que fez de tudo para manter o casamento e a família. Dois meses depois ele tentou voltar, mas a separação foi muito humilhante. “Fui exposta, me senti envergonhada e não quis mais”.

Quando questionada sobre a data do acontecido, a resposta vem detalhada, como se estivesse cravada na língua: dia 17 de fevereiro de 2015. Ele esperou escondido ela chegar do trabalho. Com os filhos em casa – hoje uma menina de 3 anos e um garoto de 13 -, desferiu 13 golpes em várias partes do corpo. Maria quase morreu e ficou cega de um olho.

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Francis Bacon – “Portrait of Henrietta Moraes”, 1963

Conseguiu sobreviver, mas restaram várias cicatrizes espalhadas. As marcas representavam para Maria a presença constante daquele dia. Quando foi encaminhada para o Núcleo Institucional de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria Pública (Nudem), logo após sair da Santa Casa, passou por uma escuta qualificada.

“Sempre fui vaidosa. Sou jovem (37 anos), com uma vida pela frente. Só que não tem um dia em que não olhei para as cicatrizes e não me lembrei do que aconteceu. Até na roupa dava pra perceber. Como esquecer, se na hora que você está tomando um banho você se lembra, quando vira para o espelho, se lembra?”.

Segundo a assistente social do Nudem, Elaine França, nesta primeira conversa a assistida demonstrou que as cicatrizes que carregava eram uma barreira para conseguir seguir em frente com sua vida.

“Percebi que as marcas a incomodavam muito e disse que iria buscar na rede de atendimento de proteção à mulher o que era ofertado. Conseguimos junto à Secretaria de Saúde do Município de forma bem rápida”, contou Elaine.

O método utilizado foi a aplicação da toxina botulínica, que suaviza cicatrizes e queloides. “Já na primeira sessão vi uma grande diferença”, contou Maria.

O tratamento ainda está sendo realizado, mas é perceptível a mudança na vida da assistida. “Hoje eu consigo falar disso sem chorar ou sem chorar muitas vezes. Mas antes era muito difícil para mim, eu não podia chegar em casa e me lamentar para a minha mãe e meus filhos. Ela idosa e eles crianças. E onde você vai procurar essa força toda que esperam? No Nudem encontrei um lugar de acolhimento, me senti esclarecida. Me tiraram as dúvidas. Vi novos pontos. Na primeira vez que vim não queria nem estar aqui, mas percebi que era um lugar que eu poderia falar e ser entendida. Hoje estou refazendo a minha vida, conheci uma nova pessoa, tenho meus filhos e voltei a trabalhar”.

Estudo                             

Casos de mulheres que têm os corpos marcados por homens são frequentes nos noticiários. Esfaqueadas, mutiladas, atacadas com ácidos. A pesquisa “A Violência Doméstica Fatal: O Problema do Feminicídio Íntimo no Brasil”, do Núcleo de Estudos sobre o Crime e a Pena da Fundação Getúlio Vargas (FGV/SP), expõe a violência brutal de 34 crimes cometidos no Brasil.

“Faca, peixeira, canivete. Espingarda, revólver. Socos, pontapés. Garrafa de vidro, fio elétrico, martelo, pedra, cabo de vassoura, botas, vara de pescar. Asfixia, veneno. Espancamento, empalamento. Emboscada, ataques pelas costas, tiros à queima-roupa. Cárcere privado, violência sexual, desfiguração. Quando se volta o olhar para a maneira pela qual foi infligida a violência, chamam a atenção a diversidade dos instrumentos usados no cometimento do crime e a imposição de sofrimento às vítimas anteriormente à execução.”

De acordo com uma promotora de Justiça da Bahia entrevistada no estudo, “muitas vezes a mulher já [está] morta [e] as facadas continuam, como se o agressor, o assassino dissesse ‘ninguém mais vai te ver bonita, seu corpo é meu, então eu o destruo para que ninguém mais o use’”.

Psicóloga do Nudem, Keila de Oliveira Antônio afirmou que violências como a vivida por Maria, que marcam e desfiguram a mulher, são punições pelo fato de não concordarem com o agressor.

“As partes do corpo normalmente atingidas são face, genitais, seios e abdome e demonstram que a violência é claramente de gênero. Diminuir ou retirar essas marcas ameniza a dor”.

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Francis Bacon – “Seated Woman”, 1961.

Um caso exposto na pesquisa corrobora o que é dito pela especialista. “O réu abordou a ex-companheira na rua, alegando que queria conversar. Tendo sido o pedido recusado, fez um disparo de espingarda carregada com chumbinho contra o rosto da vítima, causando-lhe lesões na face”.

Recuperando a dignidade                                            

O objetivo era arrancar o sorriso. No meio da rua, ele socou a boca dela até caírem os dentes da frente. Depois, puxou-a pelo cabelo e esfolou sua pele no asfalto. O “motivo” dele não convém, não faz diferença nesta história.

A brutalidade acima foi vivida por Suelen*, hoje com 35 anos. A totalidade de sua vida foi marcada pela violência. Nesse dia deu um basta. Desde criança apanhou e viu a mãe apanhar do pai. “Por ciúmes da minha mãe, ele dizia que eu não era parecida com ele e por isso era filha de outro”.

Do primeiro marido, com quem viveu por 16 anos – ela saiu de casa com 15 para se livrar as agressões do pai – também foi agredida por todo o relacionamento. Dele, se libertou quando ele bateu com o cabo de uma arma na sua cabeça.  “Foi a gota d’água”.

Aí veio o segundo, que igualmente espancou-a muito. “Mas esse último, pai dos meus dois filhos mais novos, esse me maltratou bastante. Eu fui para ele um saco de pancadas”.

Ela já perdeu as contas das vezes em que apanhou. Por esse motivo, ele foi preso duas vezes até ser detido novamente no incidente relatado acima. “Por um ano fiquei tampando a minha boca, sem sair de casa, sendo humilhada por ele, que tirava sarro da minha situação. Me chamava de desdentada, dava risada. E tinha a dor e cheiro também, insuportável”.

Quando Suelen procurou a Defensoria Pública, o objetivo dela era apenas conseguir a pensão das crianças. O pai das mais novas nunca ajudou com nada. Mas acabou parando no Nudem, que resgatou esse histórico de violência e a orientou sobre seus direitos.

Eliane assistente social 

“Aqui a Suelen também passou por uma escuta qualificada, na qual identificamos essa necessidade primária da reparação estética. Só que diferente do caso da Maria, foi um pouco mais difícil de conseguir. Realizamos uma parceria com o curso de odontologia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul e o tratamento está sendo feito por alunos com a coordenação de um professor”, explicou França.

Hoje Suelen voltou a sorrir. O tratamento ainda está sendo realizado, mas as mãos já não vão mais à boca quando precisa conversar com alguém. “Eu vivi um ano com vergonha de mim mesma. Estou muito feliz em poder fazer coisas simples como mastigar, sorrir, conversar”.

Atendimento integral

A mulher precisa ser protagonista da própria vida. Esse é um dos princípios do Nudem. “A gente não impõe nada a elas quando vêm aqui. As vontades precisam ser sinalizadas pela própria mulher. Quando descobrimos as suas necessidades, vamos fazendo contatos com a rede de proteção à mulher. Encaminhamos pros Creas, Cras, serviços de psicologia”, explicou a assistente social.

Sobre os tratamentos estéticos, Elaine esclareceu que o objetivo não é o mero embelezamento. “É pelo resgate da autoestima e da confiança que essas mulheres precisam ter para romper o ciclo da violência”.

Ciclo que foi vivido pelas duas mulheres desta reportagem. No caso de Suelen, em seus três relacionamentos. O início violento, a agressão física extrema e depois a lua de mel, com os pedidos de desculpa e arrependimento.

Para efetivar a proteção à mulher, o Nudem oferece um atendimento integral. “Aqui não atendemos apenas a vítima de violência, mas também toda a sua família, em todos os âmbitos: jurídicos, sociais e psicológicos. Para isso trabalhamos em parceria com diversos órgãos da rede de proteção”, explicou.

Violência tolerada

Apesar de todos os avanços, as pessoas são o maior empecilho na luta contra a violência de gênero. “São muito tolerantes com a violência contra a mulher. Antes de acontecer comigo, nunca tinha tido noção de que era tão normal. Esse machismo todo”, contou Maria.

Para ela, a questão mais difícil de lidar foi com a forma que a tratavam. “É estranho dizer isso, mas perante algumas pessoas é como se eu fosse obrigada a ter morrido. Alguns me olham atravessado por eu ter reerguido a minha vida. Sinto a pressão em cima de mim. Parece que por eu ter voltado a trabalhar, a viver, não foi tão grave e por isso eu não tenho tanta razão”.

*Nomes foram alterados para a preservação da identidade das assistidas.

**Reportagem especial publicada no 11* boletim informativo do Nudem .

***As obras que acompanham o texto são do pintor irlandês Francis Bacon e registram as violências e os horrores do pós-guerra do século XX.

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